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Há livros que sabemos o que são mesmo sem os lermos. Podemos até falar sobre eles com alguma propriedade e, no entanto, nunca os termos conhecido realmente. Este é um desses casos. Muitos sabem o que é o big brother e tem noção do que “orweliano” pode querer dizer. Acontece muito com estas chamadas distopias, o número de leitores é bastante diferente do número daqueles que conhecem a história. E isto não deixa de revelar algo sobre a qualidade dessa mesma história, ou do seu poder. Infelizmente, na minha opinião, esses livros também podem ser fracos em termos literários. É o que se passa com o Nós de Zamiatine ou o Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, ambos comentados aqui no pedrices, ambos livros em que apreciei a importância da história, mas em que a leitura não foi propriamente agradável.
1984 distingue-se por ser um livro que leva mais a sério as suas premissas, que literariamente não é extraordinário mas está muito bem escrito, que se preocupa não só em ser coerente consigo próprio mas também com o mundo em que se inseria, na época do autor, e em que se inseriria, se esta distopia se concretizasse. Até uma nova língua Orwell inventa, e usa-a durante o livro, dedica-lhe um apêndice, explica-nos com assinalável detalhe como ela funciona.
Escrever livros sobre algo que afeta todas as dimensões da vida e à escala planetária, é uma tarefa gingantesca. Por isso, normalmente usam-se pequenos microcosmos que sejam representativos do todo, e daí tiram-se as consequências para o resto do conjunto. Mas Orwell atira-se com coragem à tarefa de explicar todo o mundo (até com o requinte de um ensaio sobre geopolítica e geoeconomia). E nem sequer se fica por apenas um dos lados, explicando o ponto de vista do estado totalitário do Grande Irmão, mas também o ponto de vista dos seus detratores. As teses são, aqui e ali, forçadas. Especialmente a ideia de que a multiplicação do bem estar leve a cidadãos mais conscientes e mais exigentes em termos políticos. No entanto, raramente ficamos com a ideia de que aquilo que Orwell preconiza é completamente descabido.
Não é, de facto, preciso ler 1984 para poder falar sobre ele, ou saber do que ele trata. Mas é um livro demasiado importante para não ser lido, e lê-lo é uma experiência quase radical, de imersão num mundo alternativo, que toca o nosso de tantas formas que, no limite, é capaz de criar algum embaraço. Ainda bem, se assim for.
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