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De 88 livros que li este ano (nem todos tiveram post), fica o balanço/destaque. Omeu 2009 em livros foi assim:
Gente Feliz com Lágrimas, de João de Melo
Continuo a pensar neste livro, de como me sentia feliz por estar a lê-lo. É raro e é bom.
O que diz Molero, de Dinis Machado
Aqui não se trata de sentir felicidade, é mesmo de rir às gargalhadas. Uma grande descoberta.
A Estrada, de Cormac McCarthy
Não é tanto o livro, é mais a escrita. Tão seca, brutal e contundente. Um autor a explorar mais, talvez já em 2010.
A Ponte sobre o Drina, de Ivo Andric
Outro que não me sai da cabeça. Um dos melhores livros que li. Só pode ter sido o melhor do ano.
Abril Despedaçado, de Ismail Kadaré
A descoberta de um grande escritor, confirmei-o depois com o Palácio dos Sonhos. Mas este Abril… o que mostra não é deste mundo. Ou é, e não se acredita.
A Portuguesa e Outras Novelas, de Robert Musil
Ainda não foi desta que li O Homem sem Qualidades. Não faz mal, enquanto houver Musil para ler, eu estou bem. Não que seja agradável, não que seja fácil. Mas porque há ali qualquer coisa, como estas histórias demonstram, que sai do que é normal conseguir meter-se nas páginas de um livro.
Para além dos livros, há autores que também li mas dos quais não me apetece destacar nenhuma obra em particular. Valem por si, basta que escrevam, eu quero ler: Pamuk, Coetzee e George Steiner.
E, finalmente, Saramago. Talvez só ele pudesse encontrar as palavras para explicar o que sinto quando leio os seus livros.
Infelizmente, só há muito pouco tempo ouvi falar de Musil. Talvez um pouco antes de ter saído o primeiro volume de O Homem Sem Qualidades. Nesse, terei que dar uma olhadela, para perceber se, para já, o vou ler ou não. Uma boa forma de entrar no universo musiliano é começar por este seu primeiro romance que, por acaso, até é relativamente breve.
Musil tem uma escrita sólida e dura, com escolhas de palavras que provocam um efeito forte no leitor. Os acontecimentos vão sendo revelados a um ritmo quase cirúrgico, num encadeamento que causa estranheza e apreensão, como não me lembro de sentir desde Kafka.
A forma como Musil penetra nos pensamentos dos seus personagens aparece como quase indecente. Ao mesmo tempo, parece ser este, um romance à procura das palavras. Há muito de indizível, de inexplicável, de desconhecido. Se o jovem Torless parece ter medo dos seus pensamentos, daquilo que realmente sente, também Musil parece rodear todas as hipóteses, passar por várias palavras até, finalmente, atingir conclusões que, mesmo assim, mostram mas não explicam.
O jovem Torless aparece como uma figura solitária na teia dos seus pensamentos, pouco preso às acções mas inextrincavelmente comprometido com as suas reflexões. No entanto, muitas vezes, deixa-as para depois. Abandona-se a atitudes que só são suas porque ainda não teve a coragem de as renegar. Mas renegá-las é trair-se. De contradição em contradição, de pausa em pausa, Torless vai-se descobrindo naquilo que vê os outros serem e ele não quer ser. Kant, a matemática, os livros, tudo são pretextos para Torless descobrir que há um rumo distante, um ponto para onde poderão convergir todos os seus múltiplos desvarios. Mas mantém-se à distância, porque não sabe lá chegar, ou não quer lá chegar. A mestria de Musil atinge pontos quase insuportáveis nesta busca desesperada, não se sabe de quê. Ou então, se calhar, sabe-se sempre, porque a verdade, ou a profundidade das coisas é como um olhar: “(…) é verdade que se pode conhecer muito melhor uma pessoa pelo olhar do que pelas palavras…”. E, por tudo isto, o livro de Musil é um olhar, é a descrição de impressões, de confusões e de quimeras. A violência e a doçura contrariada fundem-se numa exploração detalhada, demasiado detalhada e insistente nos seus contornos mais cruéis. Porém, evita-se o confronto com o concreto, nada se explica, o indizível torna-se a forma de expressão de Musil, assumidamente umas vezes, num sussurro noutras.
De página em página, caminhamos para um poço que penetra fundo não se sabe bem onde mas com a certeza que o caminho para dali sair, se existe, está ao alcance de poucos. Não cabe ao autor dar respostas, cabe ao leitor encontrar o que quiser, ou puder: “Sei que as coisas são as coisas e assim será sempre, e que eu as verei sempre, ora de uma maneira, ora de outra. Ora com os olhos da razão, ora com os outros… E nunca mais tentarei comparar as duas coisas…”.
P.S. Acredito que O Homem Sem Qualidades seja um dos expoentes máximos da literatura, e isso tudo... Mas não haverá nada a dizer sobre este Torless? João Barrento faz uma interessantíssima introdução, em que fala de Musil e d'O Homem Sem Qualidades, justificando até a tradução do título. Uma introdução que serve para falar de tudo menos do livro que se vai ler, e é pena.
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