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(a leitura deste texto, sem ler o livro, prejudica gravemente a fruição da história)
O meu fascínio por Pamuk é, agora, completo. Comecei com A Vida Nova (a ver se um destes dias escrevo alguma coisa sobre esse), passou depois para Neve, que anda por aí, num dos primeiros posts, e cheguei agora a esta casa.
Antes de mais, a estrutura deste romance é rica e complexa, com múltiplos narradores, que nos permitem uma visão invulgarmente completa daquilo que se vai passando e, especialmente, daquilo que já se passou.
No primeiro capítulo o narrador é Redjep, um anão que, pelo que vamos percebendo, trabalha como criado para uma senhora mais velha, Fatma, que nos aparece como a narradora no segundo capítulo, no qual ficamos a saber que tem 90 anos e muita coisa para contar. Depois, é Hassan, um jovem fascista que se entrega a actividades como ameaçar lojistas para que estes financiem o movimento a que pertence, fortemente anti-comunista que, no terceiro capítulo, toma o lugar de narrador. Nos quarto e quinto capítulos são Faruk e Metine, netos de Fatma, de visita à avó, que nos narram a história.
A partir daqui estes narradores vão-se revezando, um por capítulo, construindo e revelando uma complexa teia onde cabem todos os extremismos, desde o religioso ao político, passando pela revelação de um passado cheio de nódoas e de segredos.
Não é fácil entrar na história, pelo contrário. Durante muito tempo o leitor navega à deriva, tentando adivinhas as relações que se vão estabelecendo subtilmente. Na verdade, até ao fim, há sempre algo de novo para descobrir. Essas pequenas descobertas mantêm ainda mais vivo o interesse e proporcionam uma leitura invulgarmente enriquecedora.
Pamuk consegue, com vários estilos de escrita, dar-nos a conhecer, mais uma vez, uma parte da história da Turquia e várias partes das histórias destas pessoas. Assim como o país é uma encruzilhada de influência, também a vida destes personagens se encontra encravada por diversas circunstâncias. Algumas revelações são chocantes, a forma como se vê um personagem pode, até, mudar radicalmente em alguns momentos de revelação ou viragem.
Fatma é viúva mas o seu falecido marido aparece como um personagem fundamental. Enquanto que esta mulher se dissolve na sua própria solidão, alimentando os seus ódios, preconceitos e imobilismo, retrato fiel de parte da sociedade turca, por outro lado, ao recordar o seu marido, deparamo-nos com uma face contrária da Turquia, a da entrega incondicional e, também irreflectida, aos valores europeus. Veja-se o pessimismo de Fatma em: “(…) eu dizia para mim própria que o mundo era belo, mas não passava de uma criança, era estúpida.”, ou em: “se eu não existisse e já não existisse ninguém, os objectos ficariam onde estão (…)”. Note-se também o pouco valor dado aos livros e às palavras que Redjep ilustra com “(…) e eu repetia para mim próprio que, afinal, se tratava apenas de palavras, de uma nuvem de sons que se dissipam mal são emitidos!”. No entanto, o contraponto do falecido surge em trechos como “(…) é a coisa mais bonita que há neste mundo, ler e aprender, porque há tantas coisas a fazer, não é verdade? (…) se tu leres, se o teu espírito despertar, perceberás um dia tudo o que há a fazer na vida, e são tantas coisas!”.
Já Hassan, serve para mostrar o fundamentalismo nacionalista, capaz de se apaixonar tanto por uma mulher que acaba por espancá-la por ela ser comunista.
A diversidade de estilos, a multiplicidade de pontos de vista e a veia de contador de histórias de Pamuk, fazem deste livro o melhor para nos iniciarmos na exploração da obra deste autor.
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