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Há pessoas que adoram listas e não têm dificuldade nenhuma em fazê-las. Para outras, isso é uma perda de tempo. Há pessoas que conseguem sempre dizer quais são os livros da vida, os filmes, etc. Para outras, isso é um exercício quase impossível. Eu sou do grupo das primeiras, confesso. Para mim, é muito simples saber quais são os meus livros da vida, os filmes da vida, os 3 autores preferidos. Gosto de ter as minhas hierarquias de preferências. É verdade que elas vão mudando ao longo do tempo, mas também é verdade que há muito que se tem mantido, como se fosse um núcleo intelectual de quem sou. Por isso, ao fim destes anos de blog, talvez seja altura de me lançar no texto que devia ter escrito há quase 20 anos, um texto sobre o livro da minha vida.

Primeiro, só um apontamento sobre o que é que é isso de ser “da vida”. Não é ser o melhor livro que já li, em termos de qualidade. Não é ser o livro que mais gozo me deu ler - poderia dizer “ o livro de que mais gosto”. Não, não é isso, o livro da minha vida é aquele que sinto que moldou, de facto, a pessoa que sou. O livro que fez com que muita coisa passasse a ser diferente depois de o ter lido. O livro que me fez crescer como nenhum outro. O livro que foi mais importante do que muitas pessoas que conheci. Não há muito de racional nisto. Adoro, adoro, adoro este livro. Nunca nenhum outro me tocou de forma tão profunda, nunca nenhum foi capaz de mexer comigo como este. Eu sei que isto é uma experiência individual, não estou à espera que aconteça às outras pessoas. Por isso, este texto é sobre este livro para mim. Nada mais.

Ofereci, várias vezes, o Ensaio Sobre a Cegueira, mas a verdade é que não o tenho. Ou melhor, não tinha. Cheguei a oferecer a minha própria cópia. Há uns dias, uma amiga que me dá a honra de dizer sempre que eu a levei à paixão pela leitura, o que não é bem verdade porque foi ela que tomou a iniciativa de me pedir um livro emprestado. Sabendo ela que eu não tinha o Ensaio, ofereceu-mo. E, por isso, olho agora para ele dividido. Devo voltar a ler? Serei capaz? Todos os anos, como tenho mostrado aqui, por ocasião do aniversário da morte de José Saramago, faço-lhe a minha modesta homenagem, relendo um dos seus livros. Este ano tudo se encaminhava para a releitura d’ A Jangada de Pedra. Até que o Ensaio se atravessou, desta forma, no caminho. Olho-o e sinto que devo voltar a pegar-lhe. Mas tenho medo. Encontro na própria obra do autor frases que me incentivam: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. E, de certa forma, eu sei uma releitura me espera, que o reecontro é inevitável.

O Ensaio Sobre a Cegueira saíu em 1995. Foi logo nessa altura que o li. Já gostava muito de Saramago mas ainda não tinha dado o “salto” para o meu escritor preferido. Nessa altura, provavelmente, o livro da minha vida era o Frankenstein, de Mary Shelley. Ainda hoje o o defendo como um dos livros mais importantes da minha vida, e um que toda a gente devia ler. Mas o que interessa aqui é o Ensaio. Lembro-me de onde o li, das primeiras linhas, de o ter levado comigo quando, nessa noite, fui a casa de uns amigos, de me ter sentado no sofá a lê-lo enquanto o resto do pessoal convivia, de ter voltado para casa e ter continuado a lê-lo até bem tarde, de ter dormido e, ao acordar no dia seguinte, ter continuado a ler, até o terminar nesse dia à tarde. E nada ficou como antes.

Agora, olhando para este novo Ensaio que me ofereceram, tenho medo. Sei que era um otimista absoluto, que tudo se arranjava, que o mundo era lindo, que a humanidade era linda, que as coisas más eram apenas um acidente de percurso. Esta visão manteve-se, no essencial, mas deixou de ser tão ingénua. Com o Ensaio aprendi mais sobre a natureza humana, sobre a crueldade, sobre o mal, do que no resto da vida, felizmente tive essa sorte. Mas tive também a sorte de o ter lido e ter, com ele, atingido um nível diferente de maturidade na minha forma de ver as coisas.

Só voltei a ter contacto com a matéria do Ensaio muitos anos mais tarde, numa magnífica encenação que o teatro O Bando fez. Vi esse espetáculo no Teatro da Trindade, admiradíssimo por ter sido possível passar aquilo para uma peça. Há poucos anos, voltei ao Ensaio, desta vez através do filme de Meirelles, o filme que Saramago viu e que o fez chorar, dizendo “estou tão feliz por ter visto este filme como estava quando acabei de escrever o livro”. Eu não fiquei tão feliz ao ver o filme como quando li o livro, mas quase. E não tenho maior elogio do que este.

O problema é que a felicidade que encontrei foi a da transformação que senti. E isso é seguramente irrepetível. Pior, não foi “felicidade feliz”, foi uma espécie de dor, de sofrimento que se converteu em algo que se acrescentou ao que era e que me enriqueceu. Mas foi um processo de sofrimento. Eu não tenho medo de reler o Ensaio e já não gostar, ou de já não gostar tanto, isso não interessa porque aquilo que ele me provocou na primeira leitura está comigo, sempre esteve desde que o li, e não será apagado. O que eu mais temo é reviver o horror de uma leitura que me faz sofrer tanto. É que há uma beleza intensa na história mas, em quase tudo, é um livro de um terrível desencanto, e de um obsceno realismo.

Agora, olhando para a minha nova cópia, continuo a hesitar. Por isso, escrevi este texto. Porque o meu blog tinha que ter um texto sobre o Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago. Porque esse é o livro da minha vida. E porque não fazia sentido que ele não fizesse parte daquilo que, no fundo, é um diário de quem vou sendo através das leituras que faço.

No próximo mês se verá se reli o Ensaio. Mesmo que o faça, não sei se conseguirei escrever sobre ele. Mas a justiça está reposta, este é o texto que devia ter escrito há quase 20 anos. E o Ensaio é o livro que ando para reler há quase 20 anos. Metade está feito.

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10 comentários

De pedrices a 24.05.2013 às 18:58

E o mesmo se pode dizer do Ensaio sobre a Lucidez, uma espécie de continuação deste.

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