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Certos livros leem-se mais por obrigação do que por convicção mas, felizmente, no caso dos grandes clássicos, isso é quase sempre sinónimo de uma grande experiência. É difícil ler algo como este Guerra e Paz e não ficar impressionado. Desde logo, pelo rigor da reconstituição, o trabalho minucioso de construção de personagens e situações, a profundidade geral que se sente a cada passagem
Quem leu os meus outros posts sobre Tolstói sabe que eu nem sempre me senti convencido com ele. Tenho, evidentemente, o maior respeito pela sua obra, mas senti durante muito tempo que não era para mim. Até que cheguei à Karenina e tive que me render, mais do que render, ajoelhar. Com Guerra e Paz faço uma vénia profunda, mas volto um pouco à minha posição inicial. Dar-lhe-ia nota 20 se estivessemos a falar da qualidade, mas a minha sensação subjetiva não é assim tão boa. Sinto-me recompensado, mas também sinto que sofri bastante - são 4 volumes - para chegar ao fim.
Mas sim, é uma obra-prima, das maiores de sempre.
Este texto conta o final do livro – não é aconselhável a quem ainda não leu.
Quando se lê um livro destes, a única coisa que está errada é sempre não o termos lido antes. É quando se lê um clássico que se percebe porque é que ele o é. Há tanta vida numa obra como esta que quase nos perguntamos como pode isto ser ficção. Anna Karenina é uma personagem extraordinária da literatura. E, no entanto, ao ler-se, nada de particularmente grandioso parece estar a acontecer. Até que nos apercebemos que é como na vida - tudo tem consequências, e o que pode acontecer, acontece mesmo. Mas isso é vulgar, é o que se passa em todos os livros, podem dizer-me. E sim, é verdade. Mas aqui há um pouco mais do que isso. Há livros que vivem atrás da história que contam, que vivem para ela, que se organizam em função de um efeito, de uma ação. Aqui, sinto-o, é diferente. Este livro está tão cheio de vida, tão cheio de realidade que aquilo que nele acontece ultrapassa a ficção.
Tenho por aí uns posts onde falo de Tolstoi e de como ainda não li nada dele que me fizesse perceber o quão grande ele é. Talvez eu seja injusto em relação ao Ivan Illich, talvez me falte perspetiva histórica. Mas este é indiscutivelmente um desses grandes, enormes, livros, que só um grande, enorme, escritor pode escrever.
A parte chata disto é que se calhar não vou mesmo poder escapar a um dia pegar nos quatro grandes… enormes… volumes do Guerra e Paz.
Mas, voltando a Anna Karenina, o que faz desta obra, afinal, algo de tão especial? Pois não sei, claro que não sei. Apenas posso dizer que são muitas coisas. E claro que são necessariamente muitas coisas que podem ser muito diferentes daquilo que interessa a outros leitores. Por isso, o que se segue é uma visão pessoal, que se demite de querer ser exaustiva e completa.
Começo por dizer que Anna Karenina é um caso de destruição da personagem. No início, ela aparece como a grande amiga, a mulher inteligente e cheia de iniciativa, a confidente, a mãe competente, enfim, uma mulher que todos gostaríamos de conhecer. Depois, à medida que os acontecimentos se vão desenvolvendo, Anna vai-se tornando mais vulgar, talvez até um pouco desprezível.
O grande acontecimento na vida de Anna é o facto de se apaixonar terrivelmente por Vronski. A paixão é de tal forma intensa que o próprio filho é relegado para segundo plano. E este é um dos pontos mais impressionantes, a mãe extremosa, a mulher exemplar, é capaz de abdicar do seu próprio filho. Quem pode olhar para uma mulher coma a mesma admiração depois disto? E é aqui que este romance começa a ser tão extrordinário, porque não invectiva contra Anna, apenas descreve, mas fazendo o leitor tomar consciência dos pensamentos de Anna, vai perturbando de forma decisiva. Anna viaja, ganha uma vida nova junto do seu companheiro. Num momento de fraqueza revê o filho, pede para o ver ainda mais uma vez. De mulher decidida, forte e apaixonante, torna-se descontrolada e neurótica.
O que mais me impressionou na história de Anna acabou por ser o seu desfecho. E impressionou-me mais porque eu já sabia o que iria acontecer. Passo a vida a tentar evitar saber demais sobre o que ainda não vi ou li mas, por um grande azar, li, num outro livro qualquer, uma alusão ao facto – atenção, vou contar - de Anna se suicidar, atirando-se para baixo de um comboio. Li todo o livro sabendo disto, e incomodado por saber. Mas nunca consegui prever quando aconteceria. Mesmo quando ela estava na estação, e eu sabia que teria que ser ali, continuava a não perceber porquê. Até que, aconteceu, Anna Karenina saíu do papel e, à minha frente, tornou-se humana, tão humana que cometeu um ato de loucura, tão incoerente e precipitado como só alguém de carne e osso poderia cometer. E, no entanto, eu sei que é só um livro. Mas é nisso que Tolstoi mais me impressionou, nessa capacidade de fazer os personagens “saltarem” para fora do livro.
Mas Anna Karenina não é um romance apenas sobre Anna. Talvez até seja menos sobre ela do que sobre Lievin, o outro grande protagnista da obra. Na verdade, os dois praticamente não se cruzam e as suas histórias vão sendo contadas em paralelo. Lievin é o personagem mais complexo e mais estimulante, do ponto de vista intelectual, que podemos encontrar neste romance. Lievin leva-nos a conhecer uma envolvente história de amor, a do seu percurso desde se apaixonar por Kitty e ser rejeitado por ela (curiosamente porque Kittty tinha a expetativa de se vir a tornar mulher daquele que iria ser o amante de Anna), até ao casamento e a forma como este vai evoluindo.
Lievin é alguém que faz um verdadeiro “percurso” ao longo da obra. A sua busca existencial, os seus debates consigo próprio e com terceiros, a suas dúvidas e angústias, a forma como o que lhe acontece na vida se reflete na forma como pensa, tudo isto torna Lievin o personagem mais “vivo” que já tive a oportunidade de “conhecer”. Debatendo-se com o sentido da vida, Lievin refete sobre o que viria a ser o ideário comunista ou socialista, sobre a fé e/ou a ciência, e podia ser qualquer um de nós a pensar sobre os mesmos assuntos. Mas particularmente interessante é que Lievin consegueefetivamente chegar a conclusões e evoluir no seu pensamento, não sem ter que se confrontar com a indiferença dos outros, a vida real, em toda a sua intensidade, não dá tréguas a estes personagens.
O encontro entre Lievin e Anna acaba por acontecer. E é um dos grandes momentos do livro. Anna volta a ser fascinante e Lievin volta a ter em que pensar. A grandeza que certas pessoas deixam à sua passagem talvez nunca deixe de brilhar. A partir deste enconto, a história poderia evoluir em várias direções, parece que tudo pode acontecer, mas, afinal, tudo prossegue sem grandes novidades. Mais uma vez, tal como na vida.
Enfim, não é fácil dizer que este livro deve ser lido, que é altamente aconselhável. Nada disso. Este livro é simplesmente imprescindível.
P.S. Não posso deixar de dizer que li a tradução de José Saramago. Exemplar, pois claro.
Pode bem ser por culpa minha, é certo, mas a verdade é que não tenho tido muita sorte nas minhas incursões em Tolstói. Há uns tempos li A Morte de Ivan Ilitch, que tanta gente considera uma obra-prima. Não é que não tenha gostado, longe disso. Porém, o tal génio de que se fala, não o consegui perceber…
Quanto a este Khadji-Murat, não há dúvida de que é uma narrativa sólida, escrita de forma exemplar e reveladora de um domínio brilhante da forma. O final é empolgante e, até, desconcertante, O problema, para mim, está, talvez, na brevidade deste relato. É que a região do Cáucaso, em toda a sua complexidade, não se explica em tão pouco. E daí uma certa expectativa frustrada. Este livro é mais sobre um combatente e um seu drama pessoal do que sobre um conflito e todos os seus labirintos.
Talvez apenas uma questão de expectativas erradas… Venha o Anna Karenina para ver se, finalmente, chego a Tolstói…
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