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Unknown

Eu devia parar para escrever um post sério sobre este livro, não era? Mas não consigo. A cabeça ainda anda às voltas e não é fácil assentar ideias. A história até pode ser parva e pouco sustentada e, no entanto, não são assim, muitas vezes, as grandes metáforas? Agitar, sacudir, chocar, são as imagens de marca de Houllebecq, mas não é isso o que mais dá gozo na literatura que rompe com o óbvio e nos empurra contra as fronteiras, que nos incomoda? Houvesse mais livros assim e, se calhar, tinhamos temas muito mais interessantes para conversar. Não gostei de quase nada, não achei grande parte daquilo verosímil, mas os livros de Houellebecq ficam-me no sangue, e este ainda está a ferver.

 

P.S. A edição portuguesa já saíu, chama-se Submissão.

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Confesso a minha ignorância: não sei nada sobre a literatura francesa contemporânea. Ok, houve o nobel de LeClézio há relativamente pouco tempo, mas não tenho sido muito feliz nas minhas tentativas de lê-lo. Fora isso, há o Patrick Mondiano que creio ser um valor seguro, mas que ainda não explorei. Fora isso, o que é a literatura francesa hoje? Tendo em conta que muitas das grandes referências literárias são francesas, é bem provável que este desconhecimento me possa estar a fazer perder algo que valha a pena.

Mas um dos autores de que fui ouvindo falar é Houellebecq. Porém, há que desconfiar. Pelos vistos, é pessoa polémica e que gosta de fazer provocações públicas. Bom, damos o benefício da dúvida? Vamos lá.

O que temos aqui é uma espécie de tratado sobre o pós-humanismo, um aviso sobre as consequências do individualismo e uma análise acutilante das consequências da falta de atenção dada à reflexão filosófica. Ou então, não é nada disto, e temos um romance pornográfico com laivos filosóficos e científicos, profundamente niilista. Seja qual for a escolha, é um livro invulgarmente importante. É-o não pelo choque que provoca, mas sim pela reflexão a que obriga. Não é bonito de ler, pois não. Houve alturas em que tive vontade de fechar os olhos, por ser mais rápido que fechar o livro. É verdade que há passagens verdadeiramente repugnantes como as descrições de rituais satânicos ou algumas das descrições sexuais. Mas tudo faz sentido nesta des(h)umanidade que Houllebecq parece não se cansar de denunciar. O pior não é aquilo que se lê aqui, é aquilo que se reconhece como verdadeiro do que dali sai. Ainda por cima, aqui não há a apresentação de falsos modelos de redenção e de retorno. Não. Não há nada marxista que, em tom paternal, venha dizer que avisou e apresentar-se como o herói salvador. Pelo contrário, os supostos regresssos à natureza, aqui entendida como humanidade, são mostrados no seu vazio. Os hippies,com essa forma de vida alegadamente mais humana, podem afinal revelar-se tão vazios, tão inevitavelmente hedonistas como quaisquer outros materialistas. Só as vias para lá chegar são diferentes. Não há nada de bom.

Mas o que é que eu gostei, afinal? Não é fácil de explicar. Aliás, não é sequer evidente que eu tenha gostado de alguma coisa. Vamos tentar ver um pouco as palavras do próprio. O trecho que se segue insere-se num comentário que um dos personagens está a fazer à obra de Aldous Huxley, debruçando-se particularmente sobre O Admirável Mundo Novo. Senhoras e Senhores, Michel Houellebecq:

(...) a sociedade ocidental foi-se aproximando cada vez mais do modelo que ele [Huxley] fixou. Um controlo cada vez mais estrito da natalidade, que acabará um dia por dissociar a procriação do sexo e por levar à reprodução da espécie humana em laboratórios, em condições óptimas de segurança e fiabilidade genéricas. Ao desaparecimento, por conseguinte, das relações familiares, da noção de paternidade e de filiação. à eliminação, graças aos progressos farmacêuticos, da diferença entre as diversas idades da vida. No mundo descrito por Huxley, os homens de sessenta anos têm as mesmas actividades, a mesma aparência física e os mesmos desejos que os rapazes de vinte anos. E depois, quando já não é possível lutar contra o envelhecimento, desaparece-se por meio de uma eutanásia livremente expressa, discretamente, depressa, sem dramas.

(...) ficam pequenos momentos de depressão de tristeza e de dúvida, mas são facilmente tratados por via medicamentosa (...). É este exatamente o mundo que nós desejamos, o mundo em que hoje desejaríamos viver.

Provavelmente, ao ler isto, solta-se um horrorizado "Eu não". Ainda bem. Espero que assim seja, mas isso não significa que isto não seja o que REALMENTE está a acontecer. Vivemos num período em que caminhamos para uma espécie de pós-humanismo que só é verdadeiramente debatido (e eventualmente enfrentado) nos meios científicos e filosóficos. A literatura mais séria não o aborda, pelo receio de parecer essa coisa sempre desprezada de ficção científica.

Mas pode parecer que não. Nada se passa. Ainda estamos bem longe dos bebés por encomenda ou da clonagem de seres humanos. Estamos, é capaz de ser verdade. Mas estamos muito mais longe das ideias de humanidade do que nunca. Via aberta para o pós-humanimo, portanto. Houellebecq lembra:

A leitura de Nietzsche só lhe provocpu uma irritação sem conesquências, enquanto a de Kant só veio confirmar o que ele já sabia. Que a moral é pública e universal: não sofreu alterações nem melhorias. Não depende de factores hitóricos, económicos, sociológicos ou culturais, ou seja, não depende do que quer que seja. Não é determinável mas determinante. Não é condicionada, é condicionante. Para ser mais claro, é um absoluto.

Uma moral observável é sempre, na prática, o resultado da mistura, em proporções variáveis, de elmentos de moral pura e elementos de origem mais obscura, quase sempre religiosa. Quanto maior é a proporção de elementos de moral pura, tanto mais longa e feliz será a existência de uma sociedade que suporte essa moral. Se fosse possível imaginar uma sociedade que se regesse pelos princípios puros da moral universal, então essa sociedade duraria o que dura o mundo.

Talvez isto queira dizer que não passamos do mesmo. Exceto a nível científico. Daí que agora comece a haver as ferramentas que antes não existiam. E já com atraso:

(...) entre os escritores da sua geração, ele [Huxley] era certamente o único que podia ver os progressos que a biologia iria fazer. Mas tudo isso se teria passado mais rapidamente se não fosse o nazismo. A ideologia nazi contribuiu fortemente para desacreditar as ideias  do eugenismo e do apuramento da raça. Foram necessárias várias décadas para se poder voltar a isso. 

Talvez seja uma coisa cíclica, a manipulação desenfreada da biologia só se revela um perigo quando ocorrem catástrofes. Antes disso, poucos notam o que aí vem.

E com isto continuo a não dizer do que/se gostei. Talvez porque continuo sem saber. Não sou tão pessimista como o autor, embora lhe reconheça muita razão naquilo que aponnta. Mas há aqui algo que definitivamente aprecio: imagine-se que um grupo de pessoas conhece este livro, não o leram necessariamente, mas sabem do que trata. Um jantar, ou o que for, entre esssas pessoas vai ser bastante animado. Porque o debate que estas ideias provocam é inevitável e invlugarmente estimulante. Confesso que a mim me atrai particularmente. Não foi há muito tempo que no âmbito académico me debrucei um pouco sobre o tema do pós-humanismo e das capacidades científicas de modificar a nossa humanidade. Li sobre o assunto, vi alguns filmes, alguns documentários, encontrei nas distopias clássicas alguns traços dessas possiblidades (Huxley, Orwell, Zamiatine, Bradbury) . O que me faltou sempre foi ver isso refletido no mundo de hoje, pensado em conjunto com aquilo que as pessoas são hoje. É claro que um debate sobre pós-humanismo é necessariamente colocado ao nível do futuro. Mas Houellebecq pega naquilo que as pessoas são (e não estamos a falar de hedonistas ignorantes, mas sim de pessoas com um nível cultural considerável) e leva às últimas consequências as possibilidades de fim-de-século. Hoje, é tudo ainda mais plausível, sem deixar de parecer ficção científica.

O New York Times diz sobre este livro que ele é um "deeply repugnant read". Mas isso, digo eu, nunca foi motivo para pôr de parte uma leitura. Há livros que são profundamente desagradáveis, precisamente pela importância, ainda que incómoda, do tema que abordam. Revejo-me, portanto, muito mais naquilo que Julian Barnes lhe chamou ''a novel which hunts big game while others settle for shooting rabbit"

É verdade que o autor exagera muitas vezes ao longo do livro. Sem dúvida, há um efeito de choque que ele quer provocar e que até seria mais intenso se subtil. Mas, ao mesmo tempo, admiro quem que se levanta e aponta o dedo ao que considera merecer a sua crítica e que, nesse processo, não hesita perante o conformismo e um politicamente correto que é, tantas vezes, impeditivo de um verdadeiro debate. As opiniões sobre o Islão, sobre os brasileiros, e sobre a humanidade em geral, podem ser estúpidas (e eu acho que são, em grande medida), mas só seriam inaceitáveis se viessem do nada e não permitissem o confronto. Ora, a minha liberdade de lhe apontar os erros nunca está condicionada. É a diferença entre o fundamentalismo e a liberdade. Houellebecq é um homem intensamente livre. Por isso, por muito idiota que possa parecer, merece o respeito de quem tem coragem de dizer o que pensa. Enfim, eu não via ninguém ir tão longe desde esse livro desconcertante e  tecnológico-porno que é Crash de J. G. Ballard - também se pode ver o filme de David Cronemberg (não confundir com o outro filme com o mesmo nome mas que não é nada de parecido) que sempre é, por incrível que pareça quendo se está a ver, menos repugnante que o livro.

Em termos literários o tom do livro vai alternando. Umas vezes parece que um professor nos está a explicar algo, outras vezes, torna-se tão cirúrgico que parece um manual de instruções. Mas isto está longe de ser deisnteressante, pelo contrário. No fundo, o autor escreve de forma a parecer-se com os tempos que descreve. Há uma acidez sempre presente que me lembrou Céline, como se Houellebecq fosse o observador do pós-moderno, um pós-Céline. A visão do mundo, o mundo do fim do século XX, é tributária dessa visão céliniana que encontramos na Viagem ao Fim da Noite mas com a tecnologia e a ciência a assumirem o protagonismo que não tinham ainda no tempo de Céline. Visão Céliniana mas numa escrita literariamente inferior.

Incontornável.

 

P.S. Calhou ter visto, logo a seguir à leitura deste livro, o filme Shame, de Steve McQueen. Não gostei nada, mas o protagonista é muitíssimo parecido com um dos personagens do livro de Houllebecq, na parte das obsessões/rotinas sexuais.

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