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Ao meu fascínio pela escrita magistral de Flaubert junta-se agora a ideia de versatilidade. Este livro não tem nada a ver com os outros que li do autor. E é espantoso por isso mesmo. Há a solidez da construção flaubertiana, mas há também um humor que (ainda) não lhe conhecia.
O ponto de partida é curioso. Dois homens encontram-se, começam a conversar e tornam-se amigos. Mas isto, que descrito em poucas palavras parece simples, é incrivelmente difícil como ponto de partida. Como podem dois homens começar a falar e ficar tão fascinados que nunca mais se largam? Como pode isto ser convincente (não estamos a falar de atração sexual, evidentemente)? Pois é precisamente isso que Flaubert demonstra. A consolidação desta amizade prossegue com o estudo de… tudo. Graças a uma herança, é-lhes permitido irem viver juntos, deixando os empregos e entregando-se a uma vida nova, numa quinta, na qual se dedicam primeiro à agricultura, depois à medicina, à arqueologia, à filosofia… a todos os ramos do saber. Mas a cada novo livro, a cada incursão numa área nova, os problemas vão-se multiplicando e os dois homens raramente acertam nas suas opções. E os livros raramente lhes dão uma resposta única para os problemas que vão tendo.
Flaubert disse que este livro era um ensaio sobre a estupidez humana e parece que fez uma intensíssima pesquisa antes de o escrever. Mas o mais interessante é perceber de que lado está ela, afinal - em quem procura? Ou em quem difunde sem procurar?
Mas Bouvard e Pécuchet é também um livro inacabado. Flaubert morreu antes de o terminar. Em termos de história, felizmente, não ficamos privados de conhecer o seu desfecho. Flaubert deixou indicação do que aconteceria depois. Nas últimas páginas do livro podemos, assim, ler o plano do autor para o resto do livro. Por outro lado, não deixei de sentir que o trabalho de linguagem aqui é menos elaborado que nos outros livros. Talvez se sinta uma pressa em avançar na história que é coisa que também não estou habituado em Flaubert, sendo mais o contrário que costuma acontecer. Depois, vim a saber que o livro foi “montado” por um familiar, pelo que seria necessariamente diferente.
Em resumo, é um magnífico fresco sobre o estado do conhecimento à época (a ação ocorre por volta de 1850), um hilariante romance sobre dois homens profundamente idiotas mas muito voluntariosos, e uma obra de sátira acutilante.
A cidade de Cartago ficou para a história como o palco de um dos mais arrepiantes episódios de violência do Império Romano sobre outros povos. Roma e Cartago tornaram-se cidades rivais e gerou-se um ódio que só aumentou com as várias guerras que ocorreram. Não se pense, no entanto, que este é um livro sobre os conflitos entre as duas cidades. Salammbô é um romance hitórico situado no III século a.c. que, após a primeira das grandes guerras púnicas entre Roma e Cartago, nos mostra o que aconteceu do lado cartaginês. Para combater Roma, Cartago recrutou soldados por todo o lado, tendo assim uma força de homens de diferentes "nacionalidades" (os lusitanos também lá estão). No final da guerra, Cartago não conseguiu cumprir as suas promessas de pagamento a esses soldados e, por isso, eles revoltam-se e começam a atacar a cidade. É neste contexto que um dos líderes dos revoltosos conhece Salammbô, a filha de Amílcar, e se apaixona por ela. Resumindo, é isto. Mas tratando-se de um romance de Flaubert, claro que é muito mais do que isto.
Antes de mais, é uma reconstituição histórica prodigiosa. Flaubert entra em detalhes impossíveis de se conhecer com tanta distância, mas sendo sempre convincente. As descrições longas e pormenorizadas são, muitas vezes, um suplício, confesso. As atrocidades descritas, desaconselham a quem estiver menos preparado para os horrores que se esperam num contexto de guerra e cerco a uma cidade. A história de Salammbô, a mulher propriamente dita, acaba por se perder no meio do contexto, o que não deixa de fazer sentido, uma vez que ele é muito mais importante do que uma protagonista.
Em jeito de balanço, foi preciso fazer um certo sacríficio para ler este livro. E se alguém quiser experimentar Flaubert, jamais o aconselharia - especialmente porque existe esse espantoso Madame Bovary. Mas é um grande livro, no sentido em que todos o deviam ser, ou seja, trata-se de grande literatura. Difícil, mas grande.
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