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O texto que se segue é, em grande medida a continuação de um outro:
http://pedrices.blogs.sapo.pt/78447.html
No entanto, devo avisar, que este texto, à semelhança do outro, não é bem sobre o livro, é sobre a minha relação com ele. Apesar de este tratar da releitura que fiz, é altamente desaconselhável a quem não tenha lido o livro e, em particular, a quem não conheça o seu desfecho.

 

 

Se podes olhar, vê.
Se podes ver, repara.

 

E depois do regresso ao Ensaio, que faço eu diante da página em branco? Ironicamente, e de forma totalmente inconsciente, só me apercebi disso ao escrever a primeira frase: utilizo um programa de texto que, para evitar distrações na escrita, me preenche totalmente o ecrã com essa cor da cegueira que atingiu misteriosamente os personagens do livro. Mas adiante, há, afinal, quem nunca cegue, e há também que, nunca tendo cegado, jamais chegue a ver. Este livro é sobre isso. Chamasse-se Ensaio sobre a humanidade e não estaria menos adequado. Chamasse-se Ensaio sobre a desumanidade e, quem sabe, estaria ainda melhor entregue o título. Mas Saramago não é tanto subtil como certeiro e, por isso, sendo o livro sobre homens e mulheres que ficam cegos, assim se chama. Ensaio porquê? Talvez porque o pior fica por acontecer. Talvez o pior ainda esteja por escrever, tenha ficado fora da descrição porque dizer o que se disse no Ensaio devia ser suficiente para se saber o que poderia vir a seguir, dispensando-se o autor de o contar. Digo isto porque também isto é dito, de certa forma, num dado momento, em que se lê "(...) se uma pessoa mata outra, por exemplo, seria melhor enunciá-lo assim, simplesmente, e confiar que o horror do ato, só por si, fosse tão chocante que nos dispensasse de dizer que foi horrível". Para mim, este é o ponto de viragem da minha relação com este livro. O livro da minha vida tornou-se a releitura da minha vida. Nada do que tinha vivido da primeira vez me desiludiu, continua lá tudo, apenas eu sou outra pessoa. Ler o Ensaio sempre foi pensar no que nele acontece, na irreprimível sensação de que tudo aquilo é humano e desumano, assustadoramente plausível e tão verdadeiro como só a ficção que vai ao âmago daquilo que somos pode descrever. Reler o Ensaio é, agora, pensar no que nele não acontece, no que aconteceria no dia seguinte. E se dentro destas páginas sempre estiveram tantas questões tão importantes, só agora vejo que o que já não está é ainda maior. Depois de a ignomínia se instalar num mundo de cegos há que imaginar o mundo quando os cegos voltam a ver. Imagino as festas, os abraços espontâneos, as festas de arromba, os espírito de entreajuda e felicidade no limpar das ruas, a felicidade dos reencontros, as histórias de amor que passam a ver o objeto das suas afeições. A felicidade instalar-se-ia. Porém, e depois? Em breve, as pessoas quereriam voltar às suas casas e muitos não o permitiriam por as terem usurpado, a busca por comida, as pilhagens agora guiadas por olhos mais famintos do que os estômagos cegos de antes, seriam ainda mais selvagens, a utilização de armas voltaria a ser possível, matar para ganhar vantagem passaria a ser a opção mais eficaz na busca do proveito individual. Tudo o que se seguisse não estaria marcado pelo desespero, estaria marcado pelo oportunismo pelo egoísmo, pelo que de mais abjeto a natureza humana tem. Pode não ser só nos maus momentos que ela se revela, é, infelizmente, também nos bons.
Mas em vez de escrever sobre o que não está no livro, não deveria eu escrever sobre o que está? Talvez lá chegue mais tarde. Acabei de o ler e, por isso, estou perturbado, como não podia deixar de estar. Acabei de o ler e, por isso, não é sobre a estética ou a arte literária que me apetece pensar, também o podia fazer, mas para isso há livros melhores. Este é um livro para pensar. E cada um de nós pode encontrar lá coisas diferentes, pode até não encontrar nada, pode até não gostar. Tudo isso faz parte desta coisa louca e fascinante que é a nossa diversidade. Mas o outro lado, a nossa natureza mais obscura está lá, e é sobre isso que me apetece pensar, por mais idiota que me pareça a utilização da palavra "apetece". E penso que ao longo da história da humanidade já houve muitos momentos assim. O holocausto, que quase toda a gente conhece; o outro holocausto, o dos campos de igual extermínio, perpetrado por Estaline, o que, aqui deste lado, poucos parecem conhecer. Limito-me a aos mais perto de nós, mas o mundo está cheio de exemplos. E, no entanto, o que fizemos com isso? Primeiro festejámos a libertação para depois, pouco a pouco, irmos colocando em museus as memórias incómodas (e já é bom que isso tenha sido feito, porque em grande parte dos casos nem sequer há o reconhecimento, o assumir das responsabilidades). Agora vamos esquecendo e retrocendendo. Impressiona-me no mundo de hoje a falta de um projeto comum, de alguma vontade de avançar em conjunto. Por um lado, vejo gente que toma decisões de régua e esquadro sem medir as consequências práticas na vida das pessoas, causando sofrimentos injustificados e inaceitáveis. Por outro, vejo pessoas tão agarradas aos seus confortos que não abdicam deles por nada, não são capazes de fazer um sacrifício para que, posteriormente, possamos todos viver um pouco melhor. Cegos de um lado, cegos do outro. Todos conseguem olhar, mas nenhum vê, quanto mais reparar.
Pessimista? Não, não sou. Apenas vejo um mundo cheio de coisas boas e cheio de coisas más. E como detesto as más!
Pronto, sou capaz de ter chegado àquele momento em que pouco escrevi sobre o livro que li mas também pouco escrevi sobre o que sinto porque o turbilhão daria para muito mais, mas apetece-me, e agora uso a palavra sem receio, descansar. Afinal, acaba por não ser novamente a melhor palavra: descansar, sim, mas não é porque me apetece, é porque preciso.

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1 comentário

De citmp a 26.06.2013 às 14:42

Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” - um retrato da nossa sociedade, tão real!!!

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