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ainda Céline:
"(...) a juventude talvez não seja senão isso, entusiasmo em envelhecer.
Em todo o nosso passado ridículo descobrimos tanto ridículo, tanta aldrabice, tanta crueldade, que talvez desejássemos acabar de vez com isso de sermos jovens, esperar que a juventude se desprenda, esperar que nos ultrapasse, vê-la ir-se, afastar-se, olhar para toda a sua vaidade, chegar com a mão ao seu vazio, vê-la passar de novo à nossa frente e depois partirmos nós, ficarmos certos de que realmente a juventude se foi e tranquilamente, pelo caminho que é muito nosso, passarmos vagarosamente para o lado de lá do Tempo, e então observarmos como as pessoas e as coisas realmente são."
p. 248
"Que não se alimentem ilusões, as pessoas nada têm a dizer umas às outras, sabido é que cada qual só fala das suas próprias mágoas. Cada um por si, a terra para todos"
p. 252
"No fundo de todas as músicas há que ouvir a ária sem notas feita para nós, a ária da Morte."
p. 256
Viagem ao Fim da Noite
Ainda Céline:
"À medida que nos deixamos estar num lugar, as coisas e as pessoas vão ficando descompostas, apodrecem e começam expressamente a cheirar mal por nossa causa."
p. 238
E sobre Veneza:
"Morria-se lá de fome tão bem como noutro lado... Mas respira-se um cheiro a morte sumptuosa, que depois não é fácil esquecer."
p.247
in Viagem ao Fim da Noite
Noutro livro:
"(...) em qualquer ideia humana genial ou nova, ou simplesmente em qualquer ideia humana séria em vias de nascimento em qualquer cabeça, persiste sempre uma parte impossível de transmitir aos outros, nem que o autor escreva volumes inteiros e passe trinta e cinco anos a explicar a sua ideia; persistirá sempre qualquer coisa que não quer sair do seu crânio e ficará consigo para sempre; com isso morrerá, sem ter transmitido a ninguém a parte talvez mais importante da sua ideia."
p.408 de O Idiota, Dostoiévski
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Mas a minha relação com o poema do post anterior não se fica por ali. Há dois anos, estava eu a passear pelo fascinante Museo del Prado, em Madrid, quando me deparo com um quadro que ilustra, precisamente, a meditação do poema da Sophia.
Não fazia ideia de que o quadro existia. E, no meio de tantos, acabou por ser uma sorte ter-me fixado naquele. A emoção foi forte mas, o melhor de tudo, foi sentir como o poema se aplica tão bem àquele quadro.
Conversión del duque de Gandía, 1884, por José Moreno Carbonero
Fonte:http://www.artehistoria.jcyl.es/artesp/obras/11027.htm
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Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Sophia de Mello Breyner Andresen
E agora, a propósito do reencontro com um poema, recordei as minhas aulas de português.
Acho que tive muita sorte com alguns dos professores de português que tive. Pelo que fui percebendo, muita gente passou pela escola sem ter aproveitado as aulas para… ler. Felizmente, desde leituras coletivas, até apresentações dos livros que cada um ia lendo, tive várias atividades relacionadas com a leitura.
Uma das minhas preferidas era ler poemas. Cada um de nós (podia ser em grupo) escolhia um poema e tinha que o ler à turma. Mas com música e tudo. Portanto, era quase uma performance à volta de um poema. A professora dava-nos umas fichas com tabelas para preencher, as quais serviam de base para comentarmos/avaliarmos a apresentação dos colegas.
Claro que isto só podia resultar em momentos lindíssimos (ok, também os houve muito maus, claro, mas vive-se bem com isso).
Lembro-me de ter lido com um colega um poema da Sophia. Quando chegávamos ao último verso de cada estrofe, líamos em coro, enquanto que o resto do poema era lido apenas com uma voz. Creio que o resultado foi simples mas belo. Ainda assim, não tão belo como o próprio poema, claro,a conferir no próximo post.
Mais Céline:
"Do aglomerado saía um cheiro de entrepernas urinado, como no hospital. Se nos falassem, tínhamos de evitar-lhes a boca porque o interior dos pobres já cheira a morte."
"Tornamo-nos rapidamente velhos, e de forma irremediável. Apercebemo-nos disso pelo jeito que apanhamos de amar a nossa própria desgraça, mesmo sem crer."
"Os estudos modificam-nos, fazem o orgulho de um homem. É preciso passar por eles para entrarmos no fundo da vida. Antes, só giramos à sua volta. Supomo-nos libertos mas esbarramos com ninharias. Sonhamos de mais. Escorregamos em todas as palavras. Isto não é isto. Só em intenções, aparências. Um homem resoluto precisa de outra coisa."
in Viagem ao Fim da Noite
Ler Céline é um pouco como passear por Roma. Tropeça-se constantemente em algo que nos assombra. É capaz de não ser propriamente belo, é decadente e grotesco, mas impressiona sempre.
Na Viagem ao Fim da Noite tenho encontrado coisas como:
"Com a desesperadora estabilidade do calor, todo o conteúdo humano do navio coagulou numa bebedeira em massa."
"Imagine-se que estava de pé, a cidade deles, completamente direita. Nova Iorque é uma cidade de pé. Já tínhamos visto cidades, pois claro, e muito belas também, e portos, e por sinal famosos. Mas entre nós as cidades estão deitadas, não é verdade?, à beira-mar ou junto dos rios, estendem-se na paisagem, esperam o viajante; enquanto aquela, a americana, não ia em desmaios, não, mantinha-se ali toda empinada, nada disposta a que se pusessem nela, empinada de meter medo."
Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Não sou muito dado à poesia. Não é que não goste, simplesmente não "pratico". Mas há poemas que valem bem por um livro inteiro.
Decidi há uns dias colocar na minha mesa-de-cabeceira (ainda é assim que se escreve? Esta é a parte mais difícil do acordo ortográfico…) um livro de poesia. A ideia é, ao mesmo tempo que leio os outros, tirar sempre uns minutos para ler um poema, apenas um. Mas lê-lo mais do que uma vez, saboreando-o. Um dos problemas que encontro na minha relação com a poesia talvez seja esse, o da pressa de chegar a algum lado, a que estou habituado devido às outras coisas que leio.
Daí esta regra - um poema por dia. Ler várias vezes. Saborear.
Não tenho uma escolha alargada, a minha secção de poesia é assustadoramente pobre. Mas um que por lá anda, e que nunca li, é uma recolha de poemas da Sophia de Mello Breyner Andresen, de quem tenho as melhores recordações, no que à poesia diz respeito.
Posto isto, inaugura-se aqui, hoje, uma nova secção do Pedrices, chamada "Poema de ontem à noite". Serve para partilhar poemas que, nestas leituras noturnas me tenham impressionado particularmente.
A conferir no próximo post.
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