O velho testamento é um conjunto de textos que alimentam a perplexidade. Lembro-me de, ainda criança, ter tomado contacto com essas histórias e ter ficado horrorizado com algumas. Na altura, temendo a Deus e as consequências de pensar demasiado, acabei por reprimir a vontade que tive de exclamar “mas, afinal, Deus é mau”. Acabei por ser educado, como um bom menino, à luz da tradição católica e com muitas explicações sobre o sentido metafórico das histórias bíblicas.
Depois, quando o meu pensamento quebrou a corrente e se atreveu a usar a sua própria autonomia, concluiu que aquele Deus, esse do velho testamento, tinha feito muitas coisas erradas. A partir daí, abandonei a religião, porque não aceito que se dêem lições a partir dos piores exemplos possíveis.
Bom, eu não sei o que Saramago pensou mas sei muito do que ele pensa (a partir de tudo o que já escreveu e explicou). Acredito, por isso, que temos em comum essa ideia de que um Deus que mostra tão mal o que devia ser não merece a atenção que lhe foi dada, não é digno de adoração.
Caim é, portanto, na minha opinião, a melhor forma de desconstruir os mitos à volta de Deus, a melhor maneira de enfrentar a Bíblia naquilo que ela tem de infame e que é, precisamente, a noção de um Deus terrível, vingativo, sem escrúpulos. Virem depois explicar que tudo aquilo são metáforas não faz com que os exemplos deixem de ser maus, não tira a Abraão o sofrimento de ter que se confrontar com o dilema de matar o seu filho, não tira a Job o sofrimento a que foi sujeito de forma injusta, não explica a proibição de comer a maçã, nem sequer explica porque é que eu, hoje, aqui e agora, vivo fora do paraíso por causa de eles terem comido a tal maçã. Pior que isto é que tudo isso explica uma outra coisa: permite que a igreja tenha interferido em todos os aspectos da vida privada, se tenha imiscuído nas relações entre as pessoas, tenha criado uma paranóia à volta dessa noção de pecado. Com isso, promoveu intensamente os preconceitos e a intolerância, quer tenha sido ao pegar em armas, quer tenha sido ao pregar, por todo o mundo, que algumas pessoas, que não seguem certos preceitos, não são dignas de viver como querem (só são dignas de compaixão e de perdão…).
Mas tentando voltar à obra de Saramago, há nela um exercício de denúncia dos vários episódios sobre os quais se devia ter reflectido muito e desde sempre. Através de Caim, Saramago visita os episódios mais horríveis e, até sangrentos, do velho testamento, mostrando-os na sua crueza. E pode-se dizer que o faz ignorando os seus sentidos ocultos, que o faz interpretando a Bíblia literalmente. E é verdade. Mas os sentidos ocultos não fazem com que o texto literal não esteja lá. Se eu quiser ensinar a uma criança que é feio roubar eu não preciso de chicotear o ladrão até ele verter sangue, vomitar, gritar de dor e declarar o seu arrependimento, ajoelhando-se e rastejando como um verme, para lhe demonstrar isso. Se quem escreveu a Bíblia não tinha qualquer competência pedagógica é algo que apenas se lamenta. Mas lê-la hoje (ou há umas centenas de anos) e não conseguir ter sobre ela um espírito crítico e ver nela muito de mau, é extraordinariamente ingénuo e defende o indefensável.
Saramago, com o seu estilo habitual, com o domínio daquela técnica de escrever que é a sua, que é tão oral, tão irónica, tão concreta, desafia quem lê Caim apenas a ver. Lembra o Ensaio sobre a Cegueira, nas palavras que diziam: se puderes olhar vê, se podes ver repara.
E é isto. Caim é apenas isto. Um livro que revela um ângulo óbvio sobre as histórias do velho testamento. Um livro que, no seu enredo mais linear, mostra que os Homens não têm que temer a Deus, que não precisam de um Deus assim e que o sentido crítico que deviam ter tido sempre, lhes podia ter aberto a porta para seleccionarem da Bíblia aquilo que ela tem de bom, em vez de aceitar, desculpando, aquilo que de mais execrável ela contém.
Não digo que o mundo seria melhor se a igreja não existisse, não sei. Mas se a igreja tivesse querido ser melhor, poderia tê-lo sido. Para isso, bastaria ensinar da Bíblia aquilo que nela é correcto e que dá aos Homens razões para amar Deus. Este, sobre o qual se debruça esta obra, de facto, nem a maiúscula merece.
Voltei à faculdade. Por isso, não vai ser fácil manter o pedrices a funcionar. Por um lado, as leituras vão passar mais por textos seleccionados do que livros. O que faz com que não seja interessante por aí além estar a escrever sobre as minhas leituras.
Como me recuso a deixar que a minha vida funcione só para um lado, vou continuar a ler livros de todos os tipos. Havendo tempo, cá deixarei as respectivas impressões que eles me forem deixando.
Estou profundamente chocado com este artigo do Vasco Graça Moura, um intelectual prestigiado e que sempre foi capaz de argumentar de forma, no mínimo, decente.
Isto... é reles, ordinário e ofensivo para qualquer democrata.